“Porque a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais penetrante do que espada alguma de dois gumes, e penetra até à divisão da alma e do espírito, e das juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e intenções do coração” (Hb4,12). Essa profunda afirmação trazida pelo autor da Carta aos Hebreus consegue, de uma maneira bastante direta, resumir o que se poderia afirmar a respeito da relação que devemos ter com a Palavra de Deus. Não é mera experiência sentimental ou gnosiológica, mas uma condição existencial que muda integralmente a vida daquele que se dispõe a seguir o percurso de tal experiência. Diante da Palavra não se pode permanecer indiferente, não se pode passar despercebido.
Ao contemplar a Palavra de Deus, vemos expressa em palavras humanas uma experiência de transcendência, como nos afirma a Dei Verbum em seu número 11. Por isso mesmo, a relação com a Palavra é tão exigente. Marca um relacionamento sempre mais profundo, que tem o poder de nos desalojar, por nos conduzir à plenitude da Revelação do Amor de Deus por nós.
Quando pensamos no encontro com a Palavra de Deus, devemos ter em mente uma intimidade com o próprio Deus. Não por acaso nos afirma S. Jerônimo que “desconhecer a Palavra é desconhecer o próprio Cristo” e, sendo Ele a própria Revelação de Deus, podemos dizer que desconhecer a Palavra é furtar-se de saborear a comunicação salvífica de Deus a nós homens.
A Palavra não pode se tornar para nós um amontoado de citações, textos isolados sem um chão concreto no qual possa fecundar e transformar. Não é um conjunto de símbolos e grafias, mas sim um transbordar de uma vivência, de uma experiência que não para no tempo da sua redação, mas se liga à nossa própria realidade, fecundando-a sempre e novamente, fazendo brotar dela uma fonte de água viva, pronta a saciar a nossa sede de Deus (Cf. Jo 4).
É exatamente a essa vivência que o texto da carta aos Efésios pretende convocar-nos quando nos fala da grande missão salvífica realizada em Cristo, cabeça de toda a Igreja que é o seu corpo (cf. Ef 4,15ss). Nele não há divisão, não há mais separação, mas sim a união em um mistério de Amor.
Significativa, nesse caso, é a figura da união entre o esposo e a esposa, também presente na epístola. A figura familiar é apresentada tendo como modelo a ação de Cristo perante a Igreja. O marido deve amar a esposa, como Cristo ama a Igreja, e a esposa deve ser submissa ao marido, tal qual a Esposa de Cristo lhe é submissa (Ef 5, 21-27). Nesse contexto, as relações estabelecidas entram em uma dinâmica existencial na qual os princípios superam o meramente legal ou conceitual e adentram na dinâmica maior da realização do plano da Salvação ofertado por Cristo a todos os crentes e, por que não dizer, a toda a humanidade.
É importante perceber que o desenvolvimento desse mistério de Salvação não fica distante de nossa realidade atual. Cada um de nós somos convidados a percorrer esse caminho de crescimento que é a íntima relação com Cristo. Uma vivência que se concretiza no dia a dia da pessoa que se percebe amada e acolhida pelo Senhor, que se abre para recebê-la, e que, nesse movimento de abertura, a convida a também se abrir, a viver um esvaziamento de tudo aquilo que é contrário ao Amor Misericordioso que se apresenta na figura do Filho.
Uma vez amada, a pessoa é convidada a amar, que é a única resposta digna de tão grande amor. Mas essa resposta não encontra eco em um intimismo estéril e segregante. Antes, se configura em uma abertura sincera ao outro, por reconhecer nesse o caminho para mais e melhor se fazer com Aquele reconhecido como sendo “rico em misericórdia, pelo grande amor com que nos amou, quando estávamos mortos em nossos delitos nos vivificou juntamente com Cristo” (Ef 2, 4-5). Nesse movimento, a experiência com a Palavra modifica profundamente a pessoa, por permitir-lhe um novo olhar sobre si e sobre os demais, concretizando uma vida nova.
Pe. Arley Humberto da Silva Santos
Equipe Arquidiocese em Missão
Arquidiocese de Montes Claros