Com menção a passagens bíblicas, padre jesuíta entretém estudantes na fé e na política

“No princípio, Deus criou o céu e a terra. A terra estava sem forma e vazia. As trevas cobriam o abismo e um vento impetuoso soprava sobre as águas. Deus disse: Que exista a luz! E a luz começou a existir. E Deus separou a luz das trevas: à luz Deus chamou dia e às trevas chamou noite. Houve uma tarde e uma manhã: foi o primeiro dia”. Da Paróquia Nossa Senhora de Montes Claros, o padre jesuíta José Flávio Monnerat Tardin destacou o Livro do Gênesis na abertura de sua palestra sobre Leitura da Relação de Fé e Política na Bíblia, acontecida no Colégio Berlaar Imaculada Conceição em 29 de junho de 2019, durante o segundo módulo da Escola de Formação em Fé e Política para Cristãos Leigos da Arquidiocese de Montes Claros.

No Capítulo 3 do Gênesis, a maldade já tinha tomado conta da terra, explicitou o sacerdote. “A serpente era o mais astuto de todos os animais do campo que Javé Deus havia feito. Ela disse para a mulher: É verdade que Deus disse que vocês não devem comer de nenhuma árvore do jardim? A mulher respondeu para a serpente: Nós podemos comer dos frutos das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: Vocês não comerão dele, nem o tocarão, do contrário vocês vão morrer. Então a serpente disse para a mulher: De modo nenhum vocês morrerão. Mas Deus sabe que, no dia em que vocês comerem o fruto, os olhos de vocês vão se abrir e vocês se tornarão como deuses, conhecedores do bem e do mal”, Gn 3, 1-5.

Mais à frente, também é narrado na Bíblia. “Javé viu que a maldade do homem crescia na terra e que todo projeto do coração humano era sempre mau. Então Javé se arrependeu de ter feito o homem sobre a terra e seu coração ficou magoado. E Javé disse: Vou exterminar da face da terra os homens que criei e junto também os animais, os répteis e as aves do céu, porque me arrependo de ter os feito. Noé, porém, encontrou graça aos olhos de Javé” Gn 6, 5-8. “Esse começo sugere para nós que Deus respeita muito a liberdade do ser humano criado à sua imagem e semelhança. Deus prefere agir através de um povo, dos pequenos, como o grão de mostarda”, esclareceu padre Tardin.

“Esse Reino de Deus não pode se separar da sociedade. O Reino de Deus não é utopia. Ele precisa de um lugar para existir. Moisés viu o sofrimento do povo, ouviu o seu clamor e desceu para libertá-lo. Deus ofereceu a ele os 10 mandamentos. O povo de Deus fez a aliança. Mais tarde, uns 500 anos mais tarde, o profeta Isaías comparará essa aliança com uma plantação de uva”, analisou o jesuíta e diferenciou o Egito, uma sociedade de escada, de classes com ricos e pobres, e Israel, sociedade de iguais.

Depois, com base no Livro do Deuteronômio, argumentou que a terra é propriedade de Deus. Ela não será vendida. “Javé nosso Deus falou-nos no Horeb: Chega de ficar nesta montanha. Comecem a caminhar e vão até a serra dos amorreus e até junto daqueles que habitam na Arabá, na região montanhosa, na Sefelá, no Negueb e no litoral. Vão para a terra dos cananeus e para o Líbano até o grande rio, o Eufrates. Essa é a terra que eu dei a vocês. Entrem para tomar posse da terra que Javé prometeu dar aos antepassados de vocês, a Abraão, Isaac e Jacó, e depois para a descendência deles” (Dt 1, 6-8). Cita o Jubileu, que era uma reforma agrária geral, uma maneira de combater o latifúndio. “Se a gente vai ao tempo de Jesus, creio que a gente vai até a Palavra do Pai”, raciocina padre Tardin.

O Capítulo 23 de Mateus é o seu foco de estudo agora. “Vocês são todos irmãos. Ninguém tem o direito de escravizar ninguém”, sentencia. “Jesus falou às multidões e aos seus discípulos: Os doutores da Lei e os fariseus têm autoridade para interpretar a Lei de Moisés. Por isso, vocês devem fazer e observar tudo o que eles dizem. Mas não imitem suas ações, pois eles falam e não praticam. Amarram pesados fardos e os colocam no ombro dos outros, mas eles mesmos não estão dispostos a movê-los, nem sequer com um dedo. Fazem todas as suas ações só para serem vistos pelos outros. Vejam como eles usam faixas largas na testa e nos braços, e como põem na roupa longas franjas, com trechos da Escritura. Gostam dos lugares de honra nos banquetes e dos primeiros lugares nas sinagogas, gostam de ser cumprimentados nas praças públicas e de que as pessoas os chamem de mestre” Mt 23, 1-7.

Volta ao Livro do Deuteronômio. Desta vez o Capítulo 15. “A cada sete anos, você celebrará o ano da remissão das dívidas. Isso quer dizer o seguinte: Todo credor que tenha emprestado alguma coisa a seu próximo, perdoará o que tiver emprestado. Não explorará seu próximo, nem seu irmão, porque terá sido proclamada a remissão em honra de Javé. Você poderá explorar o estrangeiro, mas deixará quites aquilo que tiver emprestado ao irmão” Dt 15, 1-3. O Capítulo 4 dos Atos dos Apóstolos o incentiva neste instante. Todos tinham tudo em comum e não havia pobres entre eles. “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava propriedade particular as coisas que possuía, mas tudo era posto em comum entre eles. Com grande poder, os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus. E todos eles gozavam de grande aceitação. Entre eles ninguém passava necessidade, pois aqueles que possuíam terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro e o colocavam aos pés dos apóstolos. Depois, ele era distribuído a cada um conforme a sua necessidade” At 4, 32-35.

É preciso “fazer com que o Reino de Deus aconteça nas comunidades e, a partir das comunidades, ser luz”, sugere o palestrante da Escola de Fé e Política. “Creio que nossa fé é uma fé que exige justiça”, acrescenta ao lembrar que, em 1974, seis anos após a Conferência de Medellín e sua opção preferencial pelos pobres, os jesuítas tiveram uma assembleia geral, quando se perguntaram qual é a missão dos jesuítas? “A nossa missão é o serviço da fé e a promoção da justiça”, recordou padre Tardin.

“O importante não é ficar nas palavras, mas na realidade. São importantes as expressões. Tem gente que fala em domínio de Deus, enquanto Deus é amor. Jesus é o protótipo do homem que vive o Reino de Deus, vive para o próximo” em contraposição ao egoísmo e ao individualismo propagados pela indústria cultural de massa da sociedade capitalista mundial, orienta o sacerdote jesuíta. O Capítulo 5 de João é a sua sugestão de leitura. “Depois disso, houve uma festa dos judeus e Jesus foi para Jerusalém. Em Jerusalém, perto da porta das Ovelhas, existe uma piscina rodeada por cinco corredores cobertos. Em hebraico, a piscina chamava-se Betesda. Muitos doentes ficavam aí deitados: eram cegos, coxos e paralíticos, esperando que a água se movesse (porque um anjo descia de vez em quando e movimentava a água da piscina. O primeiro doente que entrasse na piscina, depois que a água fosse movida, ficava curado de qualquer doença que tivesse)” Jo 5, 1-4. “A lógica da piscina é pagã. É competitiva. Ela só cura o primeiro”, refletiu padre Tardin. “Voltando à ideia de Povo de Deus como luz das nações, Capítulo 5 de Mateus, uma cidade situada entre os montes não pode ficar escondida”, fez mais uma reflexão e mencionou ainda Isaías e Miquéias.

“Penso que a Igreja deu uma marcha a ré ao encaminhar o povo para dentro da sacristia. A sociedade tem altos e baixos. Em geral no mundo, há um certo consenso de que o bom para nós é procurar o justo, o honesto, mais consciência de direitos humanos”, analisou padre Tardin e destacou a aliança da fé com a justiça. “Uma das fraquezas que nós temos hoje”, indicou. “Você pode fazer um discurso de fé e justiça, mas os cantos que vêm depois” nos castigam, testemunhou e completou seu pensamento. “Pensando alto nessa linha, uma diferença que eu vejo são as discussões pastorais e os discursos. Ficamos no discurso e paralisados na prática”, sublinhou ao confrontar a realidade rural com a realidade urbana.

As Diretrizes da Igreja apontam para a identidade das comunidades, pontuou a assistente social e presidente do Conselho Nacional do Laicato do Brasil (CNLB), Sônia Gomes de Oliveira. Montes Claros tinha mais de 10 mil favelados na década de 1980. Ciro dos Anjos, Alterosa, São Geraldo II eram todos bairros da periferia e da marginalização social. Morriam muitas crianças de fome, desnutridas. Fizemos o Projeto “A Casa do Pão”, que chegou a oferecer sopão aos pedintes. Hoje voltamos a ter pessoas pedindo comida. As intervenções foram feitas pelo militante do Regional Norte do Sindicato Únicos dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais (Sind-UTE/MG), Geraldo Costa, e pela religiosa Irmã Etelvina Moreira de Arruda, das Irmãs Missionárias Franciscanas Diocesanas da Encarnação.

O padre Tardin exemplificou o debate com sua chegada à cidade. “Cheguei em Montes Claros em 1985. Tinha 34 anos. Padre, aqui o povo só não passa fome na época da manga e do pequi. Já ouviram essa expressão?”, perguntou o sacerdote e frisou a importância de seguir as orientações da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). “Nós devemos evangelizar a partir dos problemas da vida. A gente hoje celebra uma fé individualizada. Celebrar mais fé e vida”, enalteceu o palestrante. “A teologia em voga é uma teologia espiritualista, intimista. Nos seminários, não se discute a Teologia da Libertação. Há sim uma condenação dela”, deu seu testemunho o padre Maciel Batista.

Para dar um exemplo concreto da realidade social contemporânea, a assistente social do Projeto de Desenvolvimento Rural e Urbano da Arquidiocese de Montes Claros, Sônia Gomes de Oliveira, comentou a respeito dos residenciais do Programa “Minha Casa, Minha Vida”. “Entra nos residenciais hoje e veja a quantidade de pequenas igrejas que existem”. O padre Tardin relatou que em 1997 leu o livro “Sua Santidade João Paulo II e a história oculta de nosso tempo”, de Carl Bernstein e Marco Politi, Editora Objetiva, 1996. É a biografia mais completa sobre o papa João Paulo II, utilizado pelos Estados Unidos da América, sobretudo no Governo de Ronald Reagan, como instrumento para derrotar com mentiras o socialismo na Polônia e no Leste Europeu. A Guerra Fria entre as potências mundiais Estados Unidos e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas foi perdendo vigor desde a morte de Josef Stalin em 1953. O papa João Paulo II fez tudo para enfraquecer as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e a Teologia da Libertação na América Latina, mas não apresentou nenhuma crítica aos regimes ditatoriais de Direita no subcontinente durante o século XX.

“Nas CEBs, a gente tinha todo um hinário cantado baseado na cultura do povo rural do Norte de Minas e que vem sendo substituído pelo gospel dos Estados Unidos”, apontou o padre Tardin e declarou que “temos reflexões que nós estamos em uma era da incerteza: a política ninguém sabe para onde vai, a democracia representativa está sepultada, a democracia participativa tem mais adeptos, os meios de comunicação, de informatização e tecnológicos manipulam o processo democrático”.

“É preciso que a Igreja católica mude a sua linguagem na periferia. O problema é o seguinte: essas mesmas pessoas que formam as comunidades se mostram luz para o mundo? Eu creio na política, mesmo o cristão que entra na política, se não tivermos uma profunda conversão pessoal, sair do nosso egoísmo e trabalhar para o outro”, sugere o jesuíta. “Se nós não tivermos um homem novo na linguagem bíblica, nós não conseguiremos sair disso”, completa seu raciocínio ao exemplificar concretamente que acompanhou em Santa Luzia, Região Metropolitana de Belo Horizonte, o Conselho Municipal de Saúde local. Nos conselhos paritários, 50% dos integrantes são eleitos pela população e 50% pelo poder público, a maioria constituída de empregados do prefeito, do governador, do presidente. Na saúde, 50% dos conselheiros são indicados pelo poder público, 30% pela sociedade civil e 20% por entidades de trabalhadores. “Nós não tínhamos conhecimento técnico para argumentar. Como preparar gente para entrar na política? Que entenda de administração pública e seus mecanismos de controle social”, propôs o palestrante da Escola de Fé e Política.

Texto e foto: João Renato Diniz/ Jornalista

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